segunda-feira, 2 de maio de 2011

Arte e Sensibilidade / Fernando Pessoa

Arte e Sensibilidade


. Toda a arte se baseia na sensibilidade , e essencialmente na sensibilidade .


. A sensibilidade é pessoal e intransmissível .


. Para se transmitir a outrem o que sentimos , e é isso que na arte buscamos fazer , temos que decompor a sensação , rejeitando nela o que é puramente pessoal , aproveitando nela o que , sem deixar de ser individual , é todavia susceptível de generalidade,portanto , compreensível , não direi já pela inteligência ,mas ao menos pela sensibilidade dos outros .


. Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização direta e instintiva da sensibilidade , pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama " inspiração ", quer dizer , o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim.versão : tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo , para compensar , reforçam o que lhes pode ser sensível ); b ) a reflexão crítica sobre essa intelectualização , que sujeita o produto artístico elaborado pela "inspiração " a um processo inteiramente objetivo - construção , ou ordem lógica , ou simplesmente conceito de escola ou corrente .


. Não há arte intelectual , a não ser , é claro , a arte de raciocinar . Simplesmente , do trabalho de intelectualização ,em cuja operação consiste a obra de arte como coisa , não só pensada , mas feita , resultam dois tipos de artista : a) o inspirado ou espontâneo , em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo , o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra ; b ) o reflexivo e crítico , que elabora , por necessidade orgânica, o já elaborado . Dir - lhe -ei , e estou certo que concordará comigo , que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo - isto é , um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia ; que não critica o que faz , que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda , ou de " maneira " , não de ser , mas de " deve ser ".


[ Fernando Pessoa , in ' Carta a Miguel Torga ,1930' ]

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